domingo, 16 de março de 2014

A Decadência do Querer



Estava sentada no banco azul da Linha Verde do Metrô. O banco azul é o assento especial para idosos, gestantes, deficientes físicos, adultos com criança de colo. Quando sentei fiquei atenta se não havia perto de mim nenhum usuário especial, assim poderia continuar lendo meu livro pesado e desconfortável. Logo na estação seguinte um senhor idoso se aproximou de onde eu estava. Então, discretamente me levantei e me coloquei de lado, tentando segurar meu livro aberto de algum jeito. Imediatamente o senhor pegou no meu punho com sua mão e me conduziu com delicadeza ao banco azul novamente. Nossos olhares se cruzaram e sorrimos um para o outro numa cumplicidade onde ele me dizia: Conhecemos as leis, mas não estou tão velho assim, vou ficar bem mesmo em pé, ainda quero e posso exercitar minha gentileza. E eu lhe respondia: Sou-lhe profundamente grata por sua gentileza e delicadeza. Hoje percebo também que o admirei naquele instante por seu exercício de vontade, de não entregar-se por qualquer motivo à sedução do conforto.

Existem idosos que Querem até o último momento de suas vidas e não se entregam à dor, ao cansaço, à ausência de futuro, à decadência do corpo e da vontade, aos confortos excessivos da vida moderna. Nesse comportamento negam-se a esticar a vida a qualquer preço. De alguma forma possuem um saber interno que os mantém conectados com o presente. É como se possuíssem uma Sabedoria cultivada pacientemente ao longo da vida, desde muito jovens, que os preparou para aceitar a impermanência da existência sem que ela os consuma. 

Também existem idosos que, mesmo sabendo que a morte é parte da vida, querem ganhar de qualquer maneira um bônus extra para ficar mais tempo neste mundo. Sofrem muito com o medo da morte e com todas as complicações que acometem o corpo físico, mas neles não existe mais Querer além do estar vivo e a decadência é cruel. Precisam de uma, duas, três ou mais pessoas que sejam suas pernas, seus braços e mãos, suas mentes, seus olhos, seus ouvidos, seus dentes, o ar que respiram. Sempre estou a me perguntar qual o sentido de viver assim, muitas vezes por um longo período, sem poder Ser com suas próprias ferramentas, em um sofrimento permanente.

Na Natureza os animais não chegam a esse ponto. No nosso mundo a medicina moderna garante o bônus, mas não garante a qualidade de vida. Houve um momento em que tive que escolher entre um médico que queria o marcapasso e outro que nem cogitou sobre essa hipótese. Escolhi pelo controlador de batimentos cardíacos e nesse momento percebi que havia tirado a possibilidade de minha mãe morrer dormindo. Hoje, vendo-a lúcida, mas com síndrome do pânico, sem poder tomar antidepressivos, reclamando de dores diariamente, totalmente dependente de pessoas para se manter viva, olhando para o horizonte sentada na poltrona, esperando a morte chegar, percebo a Sabedoria da Natureza e o nosso apego em permanecer neste mundo e em querer que o outro fique, fique, fique...

Vivemos com pavor de soltar, com pavor do próprio viver, já que aprender a viver é aprender a soltar. Sogyal Rimpoche


7 comentários:

  1. Pois é, Silvia, como disse Rimpoche, o problema é aprender a soltar. A educação nas escolas, como sempre defendi, deveria ser sobre a construção do indivíduo, e não sobre o conteudismo. Deveríamos aprender, desde cedo, sobre o ciclo natural da vida e da morte, não sobre a pupa e a borboleta. Deveríamos aprender a ouvir e perceber a sabedoria dos idosos, e não apenas louvar os grandes passos da medicina (que muitas vezes são passos para trás).Deveríamos aprender que, assim como precisamos acolher e soltar uma criança, ao mesmo tempo, para que cresça independente e segura, o mesmo funciona com os idosos. Tenho visto casos impressionantes de amigos próximos, e concluo que não há regra. Às vezes a medicina acerta, às vezes, milagres acontecem. Independentemente disso, acho que o maior problema é não respeitar o ciclo natural da vida, não sabermos soltar com tranquilidade e, principalmente, confiança no que está por vir. Bj!

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    1. Iracema, você me fez lembrar de algumas situações que tenho vivido. Na pedagogia Waldorf a história da pupa de da borboleta não é contada pela ciência, mas na comemoração da Páscoa, como um símbolo majestoso de renovação. Portanto ela vem como alimento da alma. Assim é bem melhor, não é?

      Os velhos não são sábios necessariamente, mas como qualquer ser humano sentem coisas que muitas vezes não são ouvidas. Esse é um tema delicado porque em um extremo temos a nossa arrogância intelectual e, no outro extremo, a depressão do idoso que suga o cuidador até adoecê-lo se nada for feito. Vamos falar sobre isto mais para frente. Lembro de um médico que quando em um desabafo lhe disse: "Doutor, parece que quanto mais faço pela minha mãe mais ela se entrega." E ele me disse: "Não faça, não mime demais."

      Com certeza a medicina não tem respeitado o ciclo natural da vida. A desculpa dos médicos para os familiares é que no Brasil eutanásia é crime. Para mim, pessoa minimamente equilibrada, sem beirar a insanidade, como muitos familiares que adoram armar um barraco hospitalar, penso que não se pode deixar um doente apenas morrer no hospital, eles precisam justificar a permanência dele com procedimentos. Uma loucura coletiva! Poucos conseguem escapar disso, mas é possível. Conheço histórias de pessoas que decidiram morrer em casa e assim foi.

      Obrigada por compartilhar seu coração comigo e me fazer refletir. Um beijo com saudades.

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  2. Muito corajoso mas, a meu ver, um tanto equivocado. Infelizmente não é a gente que decide quanto tempo quem vai viver, independente de um marca passo. Também não sei o que faz as pessoas ficarem tão mesquinhamente apegadas ao material de um modo geral e à vida em particular, mesmo sem a menor qualidade. Acho que esse apego é um dos sintomas da demência, e os velhos que não chegaram (ainda) a esse estágio é porque não viveram (ainda) o suficiente. Houve um tempo que eu desejei que as demências fossem virais, daqueles vírus tão agressivos que se alimentam do hospedeiro até a última gota, transformando-o em nada.
    Minha amiga, que tema áspero esse que você escolheu... talvez devamos discutir eutanásia... será???
    Beijos.

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    1. Oi, Maria Helena! O tema é áspero mesmo, mas este blog não é o que eu chamaria de "um encanto"! rss

      De fato acho pouco provável saber com exatidão quando vamos morrer, mas conheço histórias de pessoas que perceberam a morte chegar, aceitaram, se recolheram e morreram em casa, com uma serenidade infinita se comparada aos que morrem em hospitais ou aos que resistem a encarar os fatos.

      Há algo que podemos fazer sobre o apego. Ele se agrava na demência, ele não vem a partir dela. O apego tem muito a ver com nosso ego que não permanecerá vivo, nem mesmo nas religiões que acreditam em vida após a morte, e ele resiste bravamente a essa finitude.

      Obrigada por estar presente comigo neste assunto. Um beijo.

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  3. A reboque da medicina fútil está a medicina altamente lucrativa. Os tratamentos de extensão da vida em geral são caríssimos e se você obtiver as "benesses do poder público, são malfeitos. Em nossa família temos tentado buscar na religiosidade um aprimoramento do espírito para sermos mais desprendidos. Mas o fato é que somos só... humanos. Na hora "H" a gente se apega ao fio de vida que temos e não importa o que precisar pra nos manter a qualquer custo...
    Somos profundamente materialistas além do que nossa própria razão possa entender.
    Abç,
    Adhemar

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    1. Adhemar, escrevi um pouco sobre seu comentário nos comentários anteriores que respondi agora. A medicina altamente lucrativa é um tópico a parte, você tem toda razão. O marcapasso muitas vezes está nesse caso!

      No final da vida o que sinto é que se somos cuidadores tendemos, como os cachorros, a iniciar uma corrida sem fim atrás do rabo, como se pudéssemos salvar aquela vida por mais tempo. Precisamos perceber a hora de parar para não permitir ainda mais desconforto e sofrimento àquele ser que já depende de nós completamente.

      Obrigada por compartilhar. Vamos trocar muitas ideias e nos ajudar a compreender. Um abraço.

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  4. Prezada Sílvia.
    Recebi sua mensagem no FB, mas como estive viajando, só pude vê-la hoje. Tentei me inscrever de alguma forma para receber mensagens sempre que um post novo é colocado, mas sou muito inábil na net, tipo analfabeto digital mesmo. Vou ler suas postagens mais recentes e comentá-las sempre que possível, pois é um assunto que muito nos interessa.
    Sobre a medicina lucrativa, vemos a "luta" contra o câncer, por exemplo, onde os tratamentos alternativos são execrados sempre sob a mesma ladainha de que não há publicação em veículos relevantes, portanto, não há evidências para adoção nos hospitais e clínicas especializadas. Submete-se os pacientes que podem pagar a um tratamento altamente agressivo. Os que não podem estão agonizando nas filas do SUS, Santa Casa ou ICESP (para falar nos casos de São Paulo), sendo tratados com doses mais leves senão os remédios não são suficientes para a demanda. E nem se pensa nos tratamentos que tem como base a não alimentação das células doentes, o fortalecimento do organismo através de medicações homeopáticas, entre outras coisas; que poderiam trazer dignidade e melhoria de condições de vida para essas pessoas que poderiam viver melhor o tempo que Deus lhes reservou...
    Grato pela atenção e espaço.
    Grande abraço,
    Adhemar

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