domingo, 29 de junho de 2014

O Fogo Morto

Ainda em tempo... Para a maior parte dos cristãos estamos em época de São João. Para os demais, aqui no hemisfério sul estamos apenas no início do inverno. Para qualquer um dos dois grupos é, portanto, tempo de acender o fogo interior para aquecer o coração. Ainda que nossa consciência não esteja muito atenta ao ritmo da natureza, já que artificializamos tanto nossas vidas que mal percebemos as estações do ano, naturalmente tendemos a estar mais dentro do que fora, mais quietos do que expandidos e como ouriços e ursos tendemos mais a hibernar do que a cantar logo cedo com os pássaros, mesmo porque nem os pássaros estão acordando tão cedo no escuro e frio do amanhecer...

Neste mês de junho li para meus alunos, ainda crianças, um pequeno conto desta época de inverno e de São João, então me lembrei do blog porque eventualmente tenho provado o gosto bom de viver apenas o essencial e o quanto isso pode nos alimentar para tempos mais difíceis como a solidão da velhice. Decidi, assim, transcrevê-lo, para dividir a percepção dessa força com quem tem me acompanhado. Chama-se O Fogo Morto e o conto diz o seguinte:

Um jovem preparava-se para viajar até um país muito, muito frio. Perguntou a seu pai qual o presente que lhe daria para a viagem. O ancião, após pensar um pouco, deu-lhe duas pedras muito duras e frias.
O filho pegou as pedras e perguntou admirado:
- Que serventia terão estas pedras duras e frias para alguém que vai às terras do frio eterno?
O pai falou:
- Meu filho, o homem não consegue levar o fogo consigo. Certamente apagaria ou queimaria quem o carrega. O calor do fogo também vive no ar e na água. Estes encerram em si o princípio ativo da vida do fogo, mas não conseguem acendê-lo jamais. Nas duas pedras que tens nas mãos o fogo morreu, porém ele pode renascer para a vida com a tua ajuda. Leva o fogo morto contigo. Ele te aquecerá quando chegares às terras do frio eterno.
(Em O Fogo de São João, compilação de Karin Elisabeth Stasch)

Celebrar as estações do ano é iluminar as circunstâncias cotidianas com o melhor do nosso humano e, portanto, carregar de sentido cada instante da nossa vida. É assim que podemos nos curar dos efeitos nocivos de viver sob condições normais! Minha mãe tem estado cada vez mais confusa com a realidade, mas ainda se importa com a limpeza da água que foi colocada para os passarinhos virem tomar banho em seu jardim. Que bom saber que a natureza pode nos alimentar a todos e a qualquer momento, assim envelhecer parece menos assustador.

sábado, 14 de junho de 2014

Cocoon





Cocoon é um filme dos gêneros ficção científica e comédia de 1985. Trata de uma exótica combinação entre idosos e extra terrestres, a única possibilidade de encontro do elixir da longa vida ou algo parecido. Fato é que, antes dos ETs, os idosos do filme são conformados com sua decadência e se entregam a ela como se não houvesse nada a fazer. No contato com o desconhecido, redescobrem a alegria de viver e reagem como se estivessem apaixonados. E estavam. Estavam novamente apaixonados pela vida.

Pensava que quando atingíssemos uma certa idade o embrião de qualquer paixão se esvaísse e nada seria capaz de retomá-lo. No entanto, certa vez, me contaram uma história onde um senhor, de aproximadamente 90 anos, dizia estar entusiasmado com o seu novo projeto construtivo, a única coisa que ele lamentava é que levaria ainda 12 anos para ficar pronto.

Este senhor poderia ser claramente o personagem de um Cocoon real. E, como ele, alguns idosos conseguem manter-se vivos até o final da vida, não com o mesmo vigor de um jovem de 20 anos, porém com vigor suficiente para manterem-se em pé, encantados com o mundo que os rodeia.

Como mostra no filme, o desencanto nos torna amargos, duros, tristes, ranzinzas, mas as paixões verdadeiras, aquelas que recuperam a natureza selvagem de nossa alma, nos tornam amorosos, compreensivos, sorridentes, quase loucos, quase livres. Divirtam-se!

domingo, 8 de junho de 2014

Atenção! Perigo! Cuidadores!


Quando procuramos o significado da palavra cuidar no dicionário, encontramos muitos significados, entre eles: ação de tratar de algo ou alguém; zelar ou tomar conta de algo ou alguém; preocupar-se com ou assumir a responsabilidade de; dar atenção a; reparar ou notar. Conclui-se, portanto, que cuidador é aquele que nota o outro, zela por ele, toma conta dele, se preocupa em assumir para si a responsabilidade sobre o outro.

Na tentativa de manter a sanidade dos “sobreviventes”, resolvemos terceirizar as duas vovós. A primeira a ser terceirizada inicialmente ficou em sua casa com cuidadoras 24hs por dia e seu marido, dez anos mais velho, completamente auto-suficiente e capaz de coordenar os afazeres diários das contratadas. A cuidadora do dia ficava também com a limpeza da casa, já que o vovô fazia o almoço, ajudava com as roupas e com os cuidados da vovó. A cuidadora da noite ficava só com a idosa e poderia contar com ajuda em caso de necessidade.

Entretanto, somando roubo de dinheiro de uma cuidadora, de alimentos de outra, faltas sem aviso prévio, licenças médicas, férias, falta de grana e tantas outras particularidades, nosso Superman muitas vezes sentia-se só e sobrecarregado. Começou, então, a perder a saúde rapidamente. Considerando que não podíamos estar presentes em seu dia a dia e a vovó já não tinha mais lucidez, não havia, portanto, melhor solução do que colocá-la em uma casa de repouso.

Tínhamos restabelecido a vida para o vovô, mas não sem ter que enfrentar diariamente o ataque de vilões que tentavam enfraquecê-lo. Não tínhamos mais problemas com faltas, férias, licenças médicas, roubos, mas passamos a ter outros problemas como subnutrição, quantidade errada de medicamento, fratura por descuido, sumiço de roupas, consumo exagerado de produtos de uso pessoal.

A segunda vovó a ficar doente e totalmente dependente está lúcida, sempre morou com sua irmã dois anos mais nova, por isso optamos por mantê-la em casa, com cuidadora 24hs por dia, em sistema de revezamento: trabalham 48hs e descansam 48hs.

Existem idosos que não dão quase trabalho para cuidar, dormem à noite, quase não solicitam durante o dia, estão mais em harmonia com a finitude do corpo. São o “sonho de consumo” das cuidadoras! Mas este não é o caso da segunda vovó. Ela solicita o dia todo, raras são as noites inteiras que dorme e é um verdadeiro compêndio médico! Fechar uma equipe de cuidadoras razoavelmente comprometida com essa situação não foi fácil, mas conseguimos, embora seja um contexto de bastante vulnerabilidade. Temos problemas com ausências, com compromissos comunicados em cima da hora, com dificuldades familiares muito sérias - consumo de drogas, convivência com bandidos. Temos, ainda, problemas com o padrão de higiene muito inferior, situação bastante delicada para doentes com infecções crônicas; problemas com troca de remédios, muito observada pela vovó que, felizmente, fica de olho em tudo; problemas com a ventilação e arrumação da casa, dos armários e guarda-roupas; com a troca de roupas do dia a dia; com os alimentos... Por isso o controle geral da casa ficou com a irmã ainda muito saudável, embora já cansada, e o almoço ficou por minha conta, assim eu poderia garantir minimamente a higiene e o valor nutritivo do almoço. As demais refeições entreguei nas mãos de Deus, como diz o povo, porque quando o gato sai, os ratos fazem a festa! Aos poucos percebi que por mais que fizesse, não teria o controle de tudo e o que quer que acontecesse seria sempre o melhor possível dentro de uma determinada conjuntura!

Mas os perigos oferecidos pelos cuidadores não acabam por aqui. Longe de estarem de acordo com a definição do dicionário, muitas vezes o cuidador viu nessa profissão um meio de ganhar mais do que uma empregada doméstica de serviços gerais e aí começa um grande equívoco. As cuidadoras acham que não terão mais que fazer faxina e as faxineiras acham que cuidar de um idoso é um serviço mais leve! Hahaha! Doce ilusão! Em primeiro lugar, ainda que o cuidador não faça a faxina, casa de idoso também suja e tem que ser mantida minimamente limpa. Quem pode manter um empregado especializado em cada serviço da casa é cerca de 5% da população!!! E o restante, como faz?

Em segundo lugar, idoso há muito tempo deixou de ser bebê: pode ser pesado, teimoso, sentir frio, já ter perdido grande parte da vontade; pode usar fralda, não enxergar, ser surdo, muitas vezes não entender o que deve fazer, ser depressivo... Ai! Cansei! Prefiro fazer faxina! Cuidar, antes de tudo, é um ato de responsabilidade e de generosidade. Se o foco for o salário e não a vocação, não dará certo.

Algumas clínicas trabalham com empregados sem registro e mal pagos, portanto com grande rotatividade de pessoal, acarretando a repetição permanente dos mesmos erros. Os cuidadores domésticos, muitas vezes bem indicados, chegam até a casos de envenenamento de idosos para roubo de seus pertences. Raros são os casos de empregados que se comprometem de fato com o idoso a ponto de tratá-lo como se fosse seu próprio pai ou mãe. Entre um extremo e outro existe o cuidador que será contratado por você. Para este cuidador as estatísticas não valem, ele será o que você e seus familiares conseguirem construir junto com ele. Temos uma das cuidadoras que foi indicada por uma amiga que a despediu. Seu jeito veio a calhar com o que precisávamos em casa, enquanto não deu certo na casa dessa amiga!

Nos tornamos únicos em nossas particularidades e assim é com os cuidadores. Como todos nós, eles também estão em maior ou menor equilíbrio. O ideal sabemos qual é, mas como o que temos é o possível, o importante é conseguir desenvolver junto ao cuidador uma relação de amizade, de troca, de reconhecimento, de respeito, de afeto, mas principalmente de gratidão, por cada segundo de sua presença em nosso auxílio, porque é impossível viver em paz sem ele neste agora tão doloroso.

Aos que a felicidade
É sol, virá a noite.
Mas ao que nada espera
Tudo que vem é grato.
Ricardo Reis em “Odes”

domingo, 1 de junho de 2014

Está Decidido: Vamos Terceirizar o Vovô!


Tempos modernos: não temos mais que cortar a lenha para preparar o alimento nem colocar carvão no ferro para passar a roupa, estamos liberados desse trabalho duro. Então, como ganhamos tempo ocioso, ao invés de utilizá-lo para a contemplação, para o descanso, para cantar e tocar ao redor da fogueira, para fazer coisas simples, resolvemos utilizá-lo para tentar controlar ainda mais a vida nos entupindo de compromissos e, assim, não pensarmos sobre o que mais tememos: a morte!

Qualquer distração, das mais desprezíveis às mais nobres, ganhou status digno de ser divulgado aos quatro ventos em um exercício constante de enaltecimento do ego, como se o que eu faço é sempre maravilhoso  e de importância infinita para o Universo! Ouvir o outro é mais interessante para saber o que vou falar de mim mesmo do que simplesmente para acolhê-lo e ajudá-lo a se entender.

Se nossa sociedade conseguir evoluir um dia, posso imaginar como os  seres humanos do futuro vão estudar nossa história, no mínimo dando muita risada de como pensamos e de como sofremos à toa. Ao olhar nossas agendas vão ver que temos muitos compromissos sociais para aumentar nossa network, assim conseguimos um número cada vez maior de "amigos" para usar no momento oportuno. Verão também que temos compromissos profissionais que estendem o nosso horário de trabalho para muito além do saudável, compromissos com a saúde que pode ser controlada cada vez mais por meio de imagens nos dando a ilusão de termos o controle sobre nossa longevidade, compromissos com a manutenção da juventude numa busca incessante da poção mágica que nos mantenha, pela eternidade, sábios e atuantes fisicamente!
Do outro lado dessa vida frenética e em um movimento de certa forma oposto está o idoso.  A morte está mais perto de fato e a energia já não é tanta, o ritmo é outro e muitas vezes conflitante com o ritmo dos mais jovens que o acompanham.

Vejo sua situação contida em três grupos básicos: o do idoso independente até o final da vida, portanto física e psicologicamente bem; o do idoso lúcido, mas dependente físico e o do idoso que perde a lucidez em diferentes graus e que se torna um perigo constante. Este último grupo é muito difícil de ser mantido em família porque ele pode a qualquer momento fugir, ser gravemente agressivo ou causar algum acidente sério. O segundo grupo também é bastante trabalhoso, uma vez que fisicamente precisa de muito suporte, mas se for uma mente em equilíbrio ajuda muito os cuidadores porque aceita o que precisa ser feito, um caso raro.

Dentro desse contexto, aquele que está apenas idoso e não dá quase trabalho está a salvo, será mantido na família até o último dia de sua vida. Porém, o vovô gagá, na maioria das vezes não terá a mesma sorte, vai para o xilindró: a casa de repouso, o asilo, a clínica de idosos... Vovô gagá rico ainda terá privilégios podendo, à escolha da família, permanecer ou não em sua própria casa com cuidadores, enfermeiros... A casa poderá ser adaptada às suas necessidades físicas ou mesmo poderá ser trocada segundo a conveniência: para mais perto dos filhos, para a casa de algum filho ou, ainda, uma casa sem degraus e menor. No caso da escolha de uma clínica, esta tende a ser de boa qualidade, com profissionais preparados, boa alimentação, atividades variadas segundo o estado cognitivo do idoso, bom padrão de higiene. Onde tem riqueza a vida prática é mais fácil, ainda que neuroses não sejam privilégio de nenhuma classe social.

Mas o vovô que não fala coisa com coisa ou é dependente físico e não tem condições financeiras confortáveis tem poucas opções. De um modo geral, ou ficará em casa com alguém da família que pare de viver a sua vida e passe a viver na urgência ou vai para onde for possível, com a qualidade de serviços a família puder prover ou que sua aposentadoria puder bancar, o que nunca será muito! Mais uma vez as situações são inúmeras e a vigilância da família deve ser constante, porque existem casos de maus tratos, falta de higiene, falta de atenção com o idoso que pode cair em uma troca de fralda, ganhar uma fratura e a família ser acionada para levá-lo a um pronto socorro. Ainda ocorrem problemas com dosagem errada de remédios, perda de roupas do idoso, alimentação inadequada ocasionando subnutrição... Essa lista pode ser tão grande quanto a criatividade humana associada à nossa desatenção ou ao nosso descaso permitir.

Fato é que a medicina moderna tem prolongado nossas vidas e não tem garantido a qualidade das mesmas. Em uma sociedade competitiva como a nossa, mal damos conta de nós mesmos, como cuidar de mais outra vida por meses, anos? Egoísmo não querer esse papel ou impossibilidade de absorver ainda mais do que nos está sendo imposto?

Vamos aos trancos e barrancos nos ajeitando a essa meleca humana e, muitas vezes, invejando as aves que podem voar livremente ou os bambus que se curvam ao soprar dos ventos. Quando será que teremos coragem para transformar o monstro que criamos?

Se há alguma possibilidade de iluminação, ela existe exatamente agora, não em alguma época no futuro. A hora é agora. Pema Chödrön