O ano está terminando, como chegam ao fim
todas as coisas. Daquelas que nos trazem sofrimento nos aproximamos do fim com
alívio, daquelas que nos trazem bem-estar desde o início queremos prolongar o
tempo ao infinito, daquelas que nos trazem dor e delícia ora queremos o fim ora
a permanência. Neste último caso, sem saber o que escolher, porque não há opção
de escolha, muitas vezes acabamos apressando o rio sem imaginar verdadeiramente
o que nos espera quando chegarmos à foz.
Este ano três amigas muito queridas
perderam suas mães: duas delas já bem idosas e dependentes plenas, a outra
ainda com vida para cultivar. Seja lá qual for a idade e o grau de sofrimento
do idoso, passar pela perda definitiva da mãe é enfrentar um fim para o qual
nunca estamos plenamente preparados.
Ainda que aos 90 anos, com pouca ou
nenhuma lucidez e total dependência de cuidados, não possamos ser vistos como
pilares de uma família, o papel de “mãe” contém em si tanto significado que
dificulta a separação. Da vida uterina, à nutrição, ao embalo, à admiração pelo
filho, à proteção da vida, à prontidão, à reflexão, ao aconchego, ao feminino, ao
amor incondicional pode existir uma longa vida que sofre ao perder simbolicamente
tudo isso, mesmo que outras pessoas próximas supram, em parte, esse arcabouço
de maternidade, mesmo que boa parte dele já tenha sido separado de nós quando
lá atrás percebemos que tínhamos que aprender a caminhar com nossas próprias
pernas. No momento em que a morte chega para essa mulher, nossa mãe, mesmo a
família sabendo que o melhor é o fim por todo sofrimento contido na decadência
física do ser, sabe-se que junto com ele irá embora a força dessa figura que é única.
E aí dói.
Quando a morte parece chegar antes da
hora é ainda mais difícil de compreender porque não existe, pelo menos de
imediato, a sensação de alívio pelo sofrimento. Existe o sentimento de que a
mãe podia ter ficado mais um pouco, que a cura ainda era uma possibilidade.
Estamos chegando ao fim de 2014. Mudar de
ano na nossa cultura significa um recomeço. Do que foi agendado e não foi
cumprido vamos esquecer o que não faz mais sentido e deixar para 2015 o que
ainda precisa ser realizado. Essa passagem nos remete ao fato de que ao fim das
coisas corresponde o início de outras coisas, que o presente momento é o
renascimento decorrente da morte do momento anterior e que se não nos diz
respeito saber quando a vida física vai acabar, as perdas e renascimentos
cotidianos deveriam nos treinar e nos tornar mais sábios para aceitar a
impermanência da vida.
Sei que minhas três amigas estão bastante
conscientes desta passagem de filhas para órfãs, do conteúdo que se encerrou,
mas as três, cada uma à sua maneira, já renasceram para uma nova história.
Os
homens vão, vêm, trotam e dançam, e nem um pio sobre a morte. Tudo parece bem
com eles. Mas aí quando ela lhes chega e às suas mulheres, filhos e amigos,
pegando-os de surpresa e despreparados, que tormentas de paixão os esmagam, que
gritos, que fúria, que desespero!... Para começar a tirar da morte seu grande
trunfo sobre nós, adotemos o caminho contrário ao usual; vamos privar a morte
de sua estranheza, vamos frequentá-la, acostumarmo-nos a ela; não tenhamos nada
senão ela em mente... Não sabemos onde a morte nos espera: então vamos por ela
esperar em toda parte. Praticar a morte é praticar a liberdade. Um homem que
aprendeu como morrer desaprendeu a ser escravo.
Michel de Montaigne
Silvia, gostei.
ResponderExcluirFeliz Ano Novo e um forte abraço de Antonio e Antonieta