domingo, 13 de abril de 2014

Censura Zero



Nascemos sem censura. A criança não tem limites, é no processo de educação que ela vai aprender que as coisas podem machucar e, portanto, doer; que as palavras devem ser amorosas para não magoar gratuitamente as pessoas; que o mundo não gira ao redor do seu umbigo; que “com licença”, “por favor” e “muito obrigado” abrem portas.

À medida que vamos envelhecendo, não sei se pelas dores, se pela difícil aceitação das limitações do corpo, se pelo esquecimento, vamos nos tornando cada vez menos usuários de uma higiene física e mental muitas vezes cultivadas por toda a vida com dedicação. Perdemos grande parte da delicadeza e sai de baixo quem cruzar o nosso caminho em um dia de insatisfação plena! Se somado ao envelhecer vierem doenças como demência senil, tudo será exacerbado, mas a essência será a mesma: falha no dosador de delicadeza!

O idoso fala sem pudor coisas como: Nossa! Aonde você vai vestido desse jeito? Está horrível! Ou então, ao visitar um conhecido: Por que você colocou isso aqui? É de um mau gosto! É comum, também, o idoso sentir-se furtado: Meu documento sumiu, o que você fez com ele?

Assim como as desconfianças, as frases indelicadas, também fazem parte do envelhecer as repetições, nossa memória nos trai cada vez mais. Elas são inevitáveis e a família muitas vezes se constrange diante da insistência do idoso ou quando ele repete pela trigésima quinta vez a história da sua carteira italiana de motorista que ele carrega em seu bolso todos os dias nos últimos 20 anos! Ainda bem que muitas vezes o ouvinte escuta a história pelas primeiras vezes e por isso tem mais paciência do que os familiares!

Sou de uma família de pessoas que casam tarde, o que equivale a dizer que os poucos netos que nasceram já conheceram seus avós muuuuito velhos, especialmente se pensarmos no referencial da criança.

Como fazer esses netos gostarem de visitar seus avós que estão adoecendo, em alguns casos falando coisas desconexas, sendo grosseiros, não querendo tomar banho por vários dias, reclamando das dores, de tudo, de todos, da vida? A única resposta que tenho é: Rindo! Achando graça! E, principalmente, rindo de nós mesmos, do que poderemos nos tornar!

Em casa adoramos compartilhar as pérolas do vovô. Rimos muito com suas ousadias, que muitas vezes são ideias que não nos escapam pela boca porque ainda temos a censura sob controle, mas passam exatamente do mesmo jeito pela nossa cabeça e, ainda pior, pela nossa alma, mas não dizemos para não nos comprometer!

O que o vovô tem que fazer deve ser conduzido com firmeza, mas se o idoso cismar ou morar só, esqueça, ele fará o que quiser quando e como quiser! O que pode ser um problema para o cuidador, que terá que sair “Procurando Nemo” quando menos esperar!

Para o idoso no fim da vida, muitas vezes nada está bom: está enjoado da comida, o vizinho faz muito barulho, os netos pequenos gritam demais, o sol queima, o frio congela e hoje é sempre o pior dia para se fazer qualquer coisa! Se o cuidador se deixar levar por essa depressão não só não ajudará como em pouco tempo também precisará ser cuidado.

Quando olho para a Natureza, percebo que se o pensar nos tornou diferenciados diante da Grande Criação também foi o responsável por tantas angústias. Não imagino uma árvore que esteja no fim de sua vida estar angustiada com o ambiente que sempre a rodeou. Também não imagino um pássaro velho se lamentar porque o que tem para comer é novamente uma minhoca. Na Natureza a morte chega mais dura e sem deixar espaços para mimos. Por isso, já que o pensar nos acompanhará até o fim, sempre que conseguirmos vamos rir da loucura humana, da nossa própria loucura!

Havendo perdido a memória do paraíso, esqueceram-se de que a vocação original da beleza é a produção da alegria. A beleza paradisíaca é o fruto que pendia da árvore da vida. Bastava uma mordida para que o corpo se transfigurasse pelo riso. É para o riso que Deus nos criou. Adão e Eva, tolos, preferiram morder o fruto da árvore da ciência – e perderam o paraíso. Ficaram tristes. Rubem Alves em Um céu numa flor silvestre

3 comentários:

  1. A perda do verniz social já é um dos sintomas de doença senil, segundo os inúmeros médicos que consultei com minha mãe. O pior é que a gente fica assistindo essa degeneração sem ter o que fazer, além de tentar descolar paciência de algum lugar, como você tão bem colocou Silvia. Abraço!

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  2. Muitas vezes, a perda dessa chamada censura social é ótima! Os mais velhos, assim como as crianças, possuem uma sinceridade feroz. E falam, ou disparam comentários que estavam nas pontas de nossas línguas, e, não falamos por pudor. Mas que tem também seu gatinho por trás da fera quando conseguimos rir das situações... Beijo, Silvia.
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  3. Silvia, parabéns GOSTEI !!!!!
    Abraços

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