domingo, 4 de maio de 2014

Por Minha Culpa, Minha Culpa, Minha Máxima Culpa


Um dia fomos como os animais e, então, tínhamos vida curta e tensa. Com o desenvolvimento de nossa habilidade física, principalmente a cerebral, chegamos aqui, neste espaço e tempo de vida longa e, ainda que de outra maneira, também tensa. Nesse percurso muitos inimigos cruzaram nosso caminho e na dominação de uma cultura sobre a outra nossa força selvagem foi sendo aos poucos aprisionada em algum canto do nosso ser. Pagamos um preço alto por isso: com nossa criatividade cativa passamos a acreditar que somos aquilo que nossos dominadores sempre quiseram nos fazer acreditar. A ousadia de duvidar de quem nos oprime fica para os loucos ou para os verdadeiramente corajosos.

Grosso modo, sob uma formação religiosa judaico-cristã secular passamos a acreditar que tudo de bom que fazemos é por obra de Deus e o mal que nos mancha a alma é obra do demônio que age por nossa permissão e culpa, portanto somos merecedores do castigo divino.

Se diante da imensidão do Universo não somos mais que um grão de areia, como um Deus de Amor pode dar tanta importância à imperfeição de um grão tão pequeno e ainda querer castigá-lo tão duramente? A quantos dominadores será que essa crença serviu e serve?

Não bastasse isso, e talvez como consequência disso, adoramos julgar o outro. Para nossa segurança emocional, baseados em uma gama de crenças nos fechamos em nossas verdades, como se a vida fosse uma ciência exata. E como ela nos assusta quando descobrimos que se assemelha mais a um jogo de pôquer! Nesse conjunto de verdades montadas e de inseguranças reais se constrói a miséria humana de autoflagelação e punição do próximo.

E onde entra a questão do idoso nisso tudo? Muito simples: o idoso se culpa por dar tanto trabalho para a família, a família se culpa por não conseguir dar ao idoso a dignidade merecida, o cuidador se culpa por perder a paciência com frequência, a filha se culpa por não estar vinte e quatro horas no hospital acompanhando cada visita do médico, cada movimento da enfermagem, o neto não quer ver a vovó morrer, o vizinho fica minando de dor o coração do doente dizendo que tal filho não veio vê-lo e deveria ter vindo, o conhecido condena a decisão da família de colocar o idoso em uma clínica, a família também se culpa por colocar o idoso em uma clínica... E, assim, o mundo vai se colorindo de cinza, se enchendo de tristeza e de dor.

Existem filosofias onde a culpa não é o foco. O que existe são princípios éticos, um aperfeiçoamento da atenção, uma aceitação das coisas como elas são e, o principal: um exercício de perdão porque existe a certeza de que fazemos sempre o melhor que compreendemos. Afirmação absurda para um perfeccionista, que também deve ser perdoado porque não consegue compreender de outro modo. Usar esse entendimento como justificativa para não fazer o que deve ser feito também deve ser perdoado e compreendido como o melhor que a pessoa pode dar.

E já que Deus pode ser visto de tantas formas diferentes, prefiro ficar com um Deus que me criou para arbitrar livremente e, seja qual for minha escolha, estará em algum lugar para me acolher e me dizer, como em A Cabana, de William P. Young: Não preciso castigar as pessoas pelos pecados. O pecado é o próprio castigo, pois devora as pessoas por dentro. Meu objetivo não é castigar. Minha alegria é curar.

O final da vida pode se estender a um longo sofrimento físico e anímico para o idoso e as pessoas próximas. Mas quando esse inferno chega ao fim, o fogo é extinto e, junto com ele, qualquer resquício de culpa deve virar cinza. É hora de deixar a água da tristeza correr livremente para lavar a alma dos vivos e trazer a sua cura.
Pensar em Deus é desobedecer a Deus,
Porque Deus quis que o não conhecêssemos,
Por isso se nos não mostrou...
Sejamos simples e calmos,
Como os regatos e as árvores,
E Deus amar-nos-á fazendo de nós
Belos como as árvores e os regatos,
E dar-nos-á verdor na sua primavera,
E um rio aonde ir ter quando acabemos!...
Alberto Caeiro, em "O Guardador
   de Rebanhos"
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5 comentários:

  1. Mais uma vez certíssima. Ainda esta semana conversei com uma amiga que, passados mais de dez anos da morte da mãe, ainda se sente culpada por tê-la internado em uma clínica. Eu, pelo mesmo motivo, às vezes me culpo... só às vezes.

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  2. Lindo! Maravilhoso! Terno e Profundo.

    Parabéns.

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  3. Muito bom! Ninguém dá o que não tem. E não se pode culpar por não ter. Não ter não é pecado, não é falha, não é erro, apenas um fato, que pode com o tempo desaparecer à medida que se passa a ter ou que se aprende a ter. E isso serve para muita coisa!

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  4. Silvia, Parabéns!
    Esse parece ser até agora seu texto mais filosófico ou será que essa sensação vem do acúmulo da leitura dos artigos anteriores? Seja como for, está LINDAMENTE escrito e continua nos possibilitando refletir. Já estou na espera do próximo. Beijo.

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  5. Silvia: Parabéns!
    Lindo com bastante profundidades, apesar de ser um questão muito delicada para se tratar?Valeu Silvia, sempre temos algo para aprender.
    Abraços

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