domingo, 13 de julho de 2014

Invasão de Privacidade


Há muitos anos atrás, a convite de uma amiga, fui passar o Carnaval em uma cidade minúscula do interior de Minas Gerais. Logo na primeira noite de festa de rua, a rótula do meu joelho direito saiu do lugar e tive que passar o resto do passeio ou de molho na casa onde estava hospedada ou em saídas diurnas leves, contando com os ombros de quem pudesse me apoiar até a próxima cadeira. Nessa oportunidade percebi como culturalmente aquelas pessoas eram diferentes de mim e do meio onde eu vivia, nem parecíamos do mesmo país.

As portas das casas não eram trancadas. Os amigos entravam e saíam quando queriam, perguntavam o que tinha para comer, abriam a geladeira para ver o conteúdo e consumiam o que encontrassem. E eu, mesmo com muita dificuldade para andar, era tratada como alguém que não precisasse de ajuda.

Do outro lado estavam os valores da cultura onde fui educada. Aprendi que deveria bater à porta antes de entrar, a ligar para o amigo e ver se havia disponibilidade para um encontro e jamais abrir uma geladeira ou um armário que não fossem os meus ou os da casa paterna, ainda que a curiosidade humana às vezes me fizesse transgredir as regra na clandestinidade! Quanto a uma pessoa enferma, ajudá-la sempre, até que o restabelecimento lhe permitisse adquirir um mínimo de independência.

Em outra oportunidade, uma amiga me contou que na sua infância ouvia suas tias e sua mãe comentarem que deveriam acordar às quatro da manhã se quisessem encontrar lugar para suas orações. Era nesse momento que ocupavam o espaço para o alimento do espírito. Mais tarde do que isso, os afazeres do cotidiano tomavam conta de cada instante e era como se não houvesse mais espaço e tempo para a vivência de Deus.

Claro que podemos questionar essa forma de pensar, uma vez que tudo pode ser encarado como divino e que nossa real presença naquilo que fazemos pode edificar o espírito em qualquer situação. No entanto, é fácil de compreender que no silêncio da alta madrugada é mais natural a conexão com o eu profundo e com energias mais sutis.

Não se trata, portanto, de fazer julgamentos, mas de perceber como lidamos de formas tão diferenciadas com a delicada questão da privacidade. Se é nela que entramos em contato com nossa espiritualidade, com nossa afetividade mais profunda, com nosso ser criativo, com nossa sexualidade, com nossa individualidade, com nossos segredos, seja no interior de Minas Gerais ou na cidade grande, seja ao amanhecer ou ao anoitecer, vamos precisar encontrar o lugar de sua realização.

Tenho notado que à medida em que envelhecemos, tendemos a ir perdendo a capacidade de preservar esses espaços de solidão voluntária e, quando chegamos ao limite da dependência de cuidadores 24 horas, nossa privacidade tende a deixar de existir. Por mais amorosos que sejam os cuidadores, se terceirizados, serão sempre pessoas estranhas dentro da família. Muito poucos vão conseguir respeitar os limites da intimidade do idoso consigo mesmo e com seus familiares. Poucos saberão até onde podem agir sem atropelar o dono da casa que, em geral, é quem está mais fragilizado. 

Como dizer ao cuidador que aquele pudim que ele comeu um pedaço sem autorização havia sido comprado para comemorar o aniversário do neto? Não se sabe nem qual dos cuidadores foi! Como dizer ao cuidador que não se quer conhecer detalhes sobre sua intimidade sexual? Como dizer ao insistente cuidador que não se quer assistir ao Big Brother ou à novela? Como dizer ao cuidador que o idoso tem sua própria religião com a qual viveu mais de 80 anos e que, portanto, não tem pretensão alguma de mudar agora que está no final da vida, sendo assim ele não quer ouvir em sua casa programas da Renascer ou da Universal do Reino de Deus? E o medo que o idoso sente de ser maltratado por não aceitar em sua casa valores tão diferentes dos seus?

Alguns acreditam que essa questão seja simples: é só exigir do cuidador o comportamento esperado ou trocar de cuidador. E para alguns é simples mesmo, são pessoas mais habituadas à condução de empregados dentro da casa. Para outros, no entanto, a relação com o empregado doméstico é frágil como uma porcelana biscuit. O idoso se sente invadido, constrangido, vulnerável e trocar de cuidador não é tão natural. 

Até chegarmos à equipe que temos hoje para cuidar de minha mãe percorremos um caminho duro. Minha mãe, com 88 anos, se envergonhava de aparecer nua a cada dia para uma cuidadora diferente. Não bastasse isso, sua intimidade com sua irmã não existe mais sem que ouvidos estranhos estejam atentos a tudo o que é dito.  Além disso, as cuidadoras muitas vezes interpretam o que acontece na família segundo seu universo cultural que, na maioria das vezes, é bem restrito e os enganos, os julgamentos, as fofocas acontecem.

Eu, mais do que ou outros, tenho a função de apaziguar os ânimos, de esclarecer os mal-entendidos, de aparar grande parte das arestas.  Devo sempre me posicionar como um centro de amor que une o que nasceu separado. Faço o meu melhor, mas também  erro, me canso, tenho preguiça, muitas vezes não sei até onde estou sendo egoísta e até onde estou preservando meu espaço para não sucumbir. O que percebo é que se encarássemos as situações como oportunidades de autoconhecimento e desenvolvimento, seríamos mais felizes e seríamos capazes de encontrar nossa privacidade nos intervalos, entre um café e outro!

Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considere a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história.
Não direi suspiros ao anoitecer, a paisagem vista na janela.
Não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida.
Não fugirei para ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.
Mãos Dadas, de Carlos Drummond de Andrade

Um comentário:

  1. Fiquei aqui pensando em minha mãe na clínica... ela não tem absolutamente nenhum minuto de privacidade. Para qualquer necessidade, mesmo as mais básicas, ela depende de alguém. De certa forma é uma benção que ela não esteja lúcida...

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